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Conversações com Renato Russo
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O Poeta Continua Aqui


"Se eu tenho medo que me esqueçam? Não;
eu estou com o público e ele está comigo."
Renato Russo


Ao longo dos 12 anos em que se manteve entre os primeiros lugares nas paradas de sucesso, o cantor e compositor Renato Russo, líder do grupo Legião Urbana, consolidou a fama de excelente letrista, intérprete sensível e pensador polêmico, conquistando milhares de admiradores em todo o país. Indiscutivelmente, formou com Cazuza a mais brilhante dupla de poetas surgida no balanço do Rock Brasil, cujos contornos se tornaram mais nítidos no início da década de 1980.

Renato nasceu no Rio de janeiro, em 27 de março de 1960. Morou vários anos com a família em Brasília, onde se formou em jornalismo. Antes de chegar ao show business, foi repórter e lecionou inglês. Apreciador dos escritores românticos e dos poetas ingleses, Renato Manfredini júnior era um leitor voraz. Por sinal, adotou o "Russo" de seu nome artístico em homenagem ao pensador francês Jean-Jacques Rosseau, ao pintor Henri Rousseau e ao matemático e filósofo inglês Bertrand Russel. A sua bagagem cultural haverá de ter sido um dos fatores que o levaram a se tornar um referencial de qualidade intelectual entre os roqueiros nacionais. Outra característica importante era o apuro estilístico de que não abria mão, quando se tratava de produzir alguma nova composição. A letra de "Índios", um dos hits do disco Dois (1986), por exemplo, levou mais de um ano até ser considerada pronta.

Renato Russo começou a se embalar definitivamente entre os acordes distorcidos das guitarras no final dos agitados anos 70, na Capital Federal, com o grupo Aborto Elétrico - experiência punk substituída pelo Legião Urbana, que formou com Marcelo Bonfá, Dado Villa-Lobos e Renato Rocha, o Negrete (que logo depois se desligou do grupo). O primeiro LP, homônimo à banda, lançado em 1984, emplacou sucessos até hoje executados nas rádios, como "Soldados", "Ainda é cedo" e a já clássica "Geração Coca-Cola". As canções tinham ritmo, harmonia e melodia de fácil assimilação, e eram - todas - complementadas por letras que destoavam das trivialidades e irreverências juvenis de certos grupos de rock.

Enquanto a banda conquistava mais e mais fãs, Renato ia marcando presença no cenário musical não apenas como letrista e cantor, mas como cidadão participante. Suas sempre instigantes, às vezes controversas visões de mundo, suas multifacetadas experiências de vida, sua luta contra os excessos de álcool e drogas e sua condição de homossexual assumido tudo isso delineou, ao lado de uma genuína rebeldia, o mito Renato Russo. Que sempre tinha o que dizer sobre política, comportamento, música, literatura e, claro, o trinômio sexo, drogas e rock' n 'roll. Nada escapava ao crivo de suas opiniões, impregnadas de traços que conformavam o imaginário das frações mais críticas e indignadas (nem por isso menos românticas) de sua geração. E não ficava apenas no discurso por uma sociedade mais justa e fraterna. Os encartes de discos incluíam páginas com a divulgação de entidades humanitárias e de defesa de minorias. Em 1994, ele doou metade da receita obtida com a venda do CD The Stonewall celebration concert para a Ação da Cidadania contra a Miséria e pela Vida, liderada pelo sociólogo Herbert de Souza (Betinho).

Renato Russo morreu no Rio de janeiro, em 12 de outubro de 1996, por complicações decorrentes da Aids. Segundo um dos médicos que o assistiam, era soropositivo desde 1990. Ao contrário de Cazuza, Renato jamais admitiu publicamente ser portador do vírus HIV. Mas nos, belos versos de "A via-láctea", incluída no CD A tempestade, ele traduziu - numa auto-referência poética, já presente no título do disco - o sofrimento que por certo lhe varava a alma:

"Quando tudo está perdido/Sempre existe um caminho / Quando tudo está perdido / Sempre existe uma luz / Mas não me diga isso / Hoje a tristeza não é passageira / Hoje fiquei com febre a tarde inteira / E quando chegar a noite / Cada estrela parecerá uma lágrima / Queria ser como os outros / E rir das desgraças da vida / Ou fingir estar sempre bem / Ver a leveza das coisas com humor / Mas não me diga isso / É só hoje e isso passa / Só me deixe aqui quieto / Isso passa / Amanhã é um outro dia não é / Eu nem sei por que me sinto assim / Vem de repente um anjo triste perto de min / E essa febre que não passa / E meu sorriso sem graça não me dê atenção / Mas obrigado por pensar em mim / Quando tudo está perdido / Sempre existe uma luz / Quando tudo está perdido / Sempre existe um caminho / Quando tudo está perdido / Não quero mais ser quem eu sou / Mas não me diga isso / Não me dê atenção / E obrigado por pensar em mim."

Renato passou os últimos dias recluso em seu apartamento numa rua arborizada de Ipanema, acompanhado apenas pelo pai e por um enfermeiro. já se recusava a prosseguir um tratamento à base de coquetéis de drogas. Seu corpo foi cremado, conforme ele desejava, e as cinzas espalhadas nos jardins do paradisíaco sítio do paisagista Roberto Burle Marx, na zona oeste da cidade.

A expressiva discografia do Legião Urbana inclui: Legião Urbana (1984), 550 mil cópias; Dois (1986), 1,1 milhão de cópias; Que país é este (1987), 770 mil cópias; As quatro estações (1989), 1,1 milhão de cópias; V (1991), 465 mil cópias; Música para acampamento (1992), 270 mil cópias; O descobrimento do Brasil (1993), 430 mil cópias; Por enquanto (uma retrospectiva, em seis CDs), 20 mil cópias; A tempestade ou O livro dos dias (1996), 400 mil cópias. Renato gravou ainda dois trabalhos solo: The Stonewall celebration concert (1993), cantado em inglês, que vendeu 200 mil cópias; e Equilíbrio distante (l995), interpretado em italiano, 550 mil cópias.

A obra de Renato Russo - um legado de genialidade poética e de integridade artística - permanecerá atual, influente e inesquecível. Principalmente para aqueles tantos homens e mulheres que, como ele, crêem que "é preciso amar as pessoas como se não houvesse amanhã".



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Facista Não Tem Nada A Ver
Com Rock'N'Roll


Comece falando da sua última volta a Brasilia, como foi, como você sente a cidade etc.

RR - Foi superlegal tocar em Brasília. Dessa última vez a gente até ficou surpreso com o pessoal porque a receptividade foi muito, muito boa. O pessoal queria subir no palco, eles invadiram o palco umas duas vezes para tentar agarrar a gente, no show tinha umas meninas berrando. E para sair foi tipo Beatles, ou então tipo Menudo. Carro com a porta aberta, motor ligado e aquela confusão. Todo mundo querendo autógrafo e tudo. Sob esse aspecto eu achei ótimo, quer dizer, a gente está com um público legal em Brasília. Também é a cidade onde a gente começou, não é? Acho que é mais ou menos natural. A única coisa que eu não gostei em Brasília foi a própria cidade, fiquei um pouco decepcionado com a atmosfera da cidade. Sé bem que eu acho que era por causa da época da seca, porque durante a seca fica todo mundo meio borocochô. Mas eu senti assim muito fascismo por parte das pessoas. É uma coisa que, claro, agente já sabia que isso existia, tanto é que metade das nossas músicas são feitas em cima disso, falando desse tipo de comportamento que o pessoal, principalmente a juventude, tem em Brasília. Mas dessa vez foi uma coisa meio chocante porque as pessoas em Brasília não têm respeito por nada. Não respeitam, não existe liberdade de opinião, foi o que eu senti. Tirando, claro, as pessoas, que são pessoas bonitas. Mas isso em qualquer lugar tem. Agora, em geral, eu achei o pessoal de lá muito fascista, muito babaca, principalmente a juventude, muito cheia de ti-ti-ti, muito ligada a Rio e São Paulo e é uma coisa que a gente não via porque quando a gente estava em Brasília a gente estava agitando, então fica mais fácil imaginar que a cidade é diferente. Também naquela época tinha quem? Tinha o Plebe, tinha o Capital, tinha a gente, tinha Escola, tinha o Finis, milhares de outras bandas. A gente estava num astral legal lá. Foi só sair que eu senti justamente isso. Parece que os filhos desses corruptos são mais corruptos que os pais. Então houve estórias horríveis do pessoal agora estar usando revólver, dando uma de machão etc. Eu pessoalmente acho isso homossexualismo latente: "Aí, recadinho para você que usa revólver para aterrorizar menina na cidade: vai ler Jung, vai ler Reich, vai ler Freud para ver se você se encaixa perfeitamente." Não, porque lá tem muito disso, né? Aqueles dez carinhas assim tudo fortinho, ficam coçando o saco e dando uma de machão. Pó, vai arrumar uma namorada, vai se divertir!

Como é que está sendo para você essa rápida e vertiginosa ascensão da música brasileira, a colocação de vocês como crítica, bom, essa importância da banda, do trabalho de vocês? Como é que foi a nível interno seu de processo, de vida e como é para a própria banda? Quais são as questões que você lança?

RR - Bem, primeiro que a gente ainda está assim, essa ascendência vertiginosa ainda não aconteceu. A gente ainda não é muito conhecido, a gente é quase tão conhecido quanto o Ultraje e Paralamas, mas a gente ainda não chegou lá. Espero que talvez até o final do ano... Sim, porque eu acho que o tipo de música que a gente faz não é um tipo de coisa assim extremamente popular. Então a gente estourou com "Geração Coca-Cola" e só agora está fazendo o maior sucesso e tudo. Mas eu acho que a gente nunca vai chegar ao ponto de ser a banda mais popular do Brasil, principalmente pelo que a gente fala. Certas pessoas não estão dispostas ou então não têm capacidade de ouvir o que a gente fala. Quer dizer, ou então não gosta mesmo, preferem ouvir coisas mais leves, mais suaves do que ouvir uma coisa um pouco mais realista, e o nosso trabalho é assim, mais ligado a coisas realistas e não em blau-blaus e "Vaquinha Mary Lou" etc. Então isso tem esse aspecto. Agora, não foi uma subida vertiginosa, a gente está nessa desde 78. Poxa, são 7 anos nisso. As pessoas é que pensam que começaram a ouvir agora. (... ) Eu acho que as pessoas se ligam no que a gente faz justamente por causa disso, a gente tem uma coisa que não é muito comum em grupos brasileiros. Aqui no Brasil tem muito dessa coisa de humor, da sátira, da ironia e a gente usa a ironia de uma forma diferente. Então é uma coisa, não diria sofisticada porque seria a gente se achar metido a besta e eu acho que a gente é uma banda comum como as outras, mas a gente tem uma coisa diferente. Não é para falar mal de nada, mas, por exemplo, você tem uma música como "Vaquinha Mary Lou e a Galinha Sara Lee" que faz o maior sucesso, todo mundo dança e se diverte e é uma coisa irônica. Agora, a ironia da gente é fazer uma música chamada "Baader-Meinhof Blues", é um outro nível, envolve um outro tipo de informação. Acho que a gente tem uma certa carga de formação. Desde o começo a gente sempre se ligou muito no que acontecia lá fora e também no que acontecia aqui dentro. Eu ainda fico surpreso como uma pessoa como o Luiz Melodia não tem acesso ao público, como o ltamar Assunção continua maldito. Então fico um pouco surpreso com isso, porque na minha cabeça Legião continua a fazer a mesma coisa que fazia antes. A única diferença é que ao invés de tocar para um público de 500 pessoas em Brasília a gente está tocando para esses ginásios com 10, 15 mil pessoas. O que eu sinto também é que as pessoas não vêem exatamente o que está acontecendo e então elas picham o rock brasileiro e tudo, mas, de certa forma, o rock brasileiro está dando uma força para as gravadoras, está fazendo circular o capital, que é uma coisa muito importante, porque se ficar dependendo do pessoal da MPB não vai para a frente porque, no momento, não é o que o público quer. Veja você que um artista como o Milton, como a Simone, ou como o Caetano ou como o Gil, eles continuam fazendo belíssimos trabalhos mas realmente não está circulando o capital e no Brasil principalmente é justamente o sucesso de artistas dentro de uma determinada gravadora que abre o caminho para outros artistas que têm propostas que não são tão comerciais. Então é uma coisa assim que eu sei é que a gente está aqui na Odeon e que a gente conseguiu esse espaço por causa do Paralamas.

Que críticas e que crises você sente mais claras hoje nessa questão da indústria, da qualidade do rock no Brasil? Quais são as perspectivas que você sente andando por aí e ouvindo tudo?

RR - O que acontece é que o rock por ser um produto de massa envolve justamente a gravadora. Todo artista de rock, além de tocar ao vivo, lógico, quer gravar um disco. Em qualquer outro lugar do mundo, principalmente no hemisfério norte, um disco tem um compacto e já sobe nas paradas e já vende milhões de cópias. Aqui não, para você vender 100 mil cópias num país que tem 150 milhões de habitantes é considerado um milagre. Então essa é a primeira dificuldade do rock no Brasil porque você vai ter que enfrentar um esquema de gravadora que é mais ligada ao pop do que ao rock. O pop sendo, no caso, música de consumo de massa. Então o rock no Brasil não é visto como uma forma de expressão artística do jovem, de expressão dos anseios, o que ele vê, as alegrias, os problemas, como ele vê o mundo, a política, o sexo, as drogas, a religião etc. O rock, no caso aqui, está muito mais ligado ao aspecto do consumo, a uma cultura de consumo, ao mercado de massa. Agora, isso é dificultado também pelo esquema da rádio. Se bem que aqui no Brasil a gente já tem algumas rádios alternativas. Mas a maioria das rádios está no esquema do boss Rádio, B-O-S-S, que é uma coisa que aconteceu no final dos anos 60 nos Estados Unidos, que é seguir uma forma. Você tem a lista das 30 ou 40 músicas que são sucesso então é repetir essas músicas ad nauseam mais e mais e mais até encher o saco e vender o produto. O disc-jockey não tem personalidade, quase não fala nada e é aquela coisa: "pois é, gente, então agora vamos ouvir o sucesso da rádio KJYZ, não sei o quê. Aqui, vocês sabem, é só sucessos." Então o que uma rádio toca todas as rádios vão e tocam atrás. Sabe, eu ouço o que eu gosto de ouvir, eu não tenho que ouvir o que as outras pessoas estão ouvindo. Cadê a minha individualidade? Pó, eu sou um animal racional, sou único, não estou preso a ninguém, não sou um bicho de três cabeças. Aí, né, o pessoal ficava puto! Justamente esse mesmo pessoal que agora fica dançando Dead Kennedys e B-52's nas festas e pichando Caetano, Chico e Milton! Mas espere aí, cadê o teu poder de raciocinar? Por que Chico é ruim agora e antes não era? Por isso é que acho importante o pessoal que deu força para a gente em Brasília, os jornalistas, os intelectuais, o pessoal do Liga Tripa estava ligado em tudo e ligado na gente e hoje você vai lá conversar com eles e eles continuam ouvindo o Clube da Esquina, continuam ouvindo o Vandré e Ravi Shankar e Jazz Rock e estão ligados a muitas outras coisas. Eu acho que você não pode ser um fascista cultural. Esse negócio de patrulha ideológica eu acho que é a coisa mais furada do mundo. As pessoas mais bonitas que eu conheço são justamente as pessoas mais abertas. Então eu acho que seria tão legal se as pessoas começassem realmente a se curtir, é uma coisa que eu nunca desisto. As pessoas dizem que eu sou ingênuo mas não consigo desistir. Descobri que eu sou um artista e então não tem assim... O artista tem milhares de preocupações, é uma pessoa superangustiada e tudo, sabe, você vê a vida de uma outra maneira, você é muito mais sensível aos problemas. Tem dias que eu nem leio o jornal. Só pego assim e só leio as manchetes principais porque se eu ler o jornal vou ficar superdeprimido e não vou querer sair de casa. Então eu acho importante que as pessoas tenham contado com outros tipos de realidade em vez de ficar só naquele mundinho, porque isso ajuda, mostra que o ser humano não é só um tipo de pessoa. (...)

Primeiro uma questão que você falou da relação da MPB e rock. Como esse rock se relaciona com a música brasileira, por exemplo?

RR - Eu não sei. Acho que rock não pode ser delineado assim música brasileira, porque rock é música universal. Por ser uma música de massa da sociedade tecnológica do pós-guerra, é uma música feita por e para jovens, e é um pessoal que sempre esteve ligado em televisão, sempre esteve ligado em videogame, fliperama - hoje em dia é videogame -, mas sempre foi uma coisa muito elétrica, muito urbana, é a música da metrópole, é música da cidade. Você vê beleza numa certa situação que se você não se adaptar a essa situação você vai enlouquecer. Então é você realmente ver música onde as pessoas mais antigas não vêem porque não estão acostumadas com isso. Então é você ver música na fumaça, é você ver música no ritmo das pessoas, nos arranha-céus, na própria vida rápida da cidade. E eu acho que o rock estaria muito mais ligado também na questão etária. Rock é um tipo de música que atende à necessidade de um determinado grupo de uma determinada faixa de idade. Então você não pode simplesmente chegar e dizer que o rock é como o jazz, é como a música clássica, ou mesmo como MPB na qual os artistas que fazem esse tipo de música procuram uma expressão universal no sentido de que o artista da MPB está falando para todas as pessoas. Claro, isso não seria delimitar o rock a um determinado público, mas, na verdade, estou falando de certos problemas que por eu ter essa idade ou certas experiências que uma pessoa de 40 anos não vai ter mais esse tipo de problema: problemas de identidade sexual, problemas de chegar em casa e querer ter o carro para sair e você não pode porque você não tem dinheiro para pagar o gás, você não tem dinheiro para comprar um carro, você depende de seus pais para isso e isso é uma coisa especificamente da idade. Então eu acho que essa discussão MPB versus rock é uma coisa duplamente ridícula, porque isso implica na ignorância do que é realmente o rock'n'roll. Rock'n'roll é uma música de jovens para jovens. Ao passo que a gente não pode chegar e dizer que a MPB é uma música de velhos para velhos porque isso é uma coisa ridícula também porque o artista popular brasileiro no caso que vai desde Tom Jobim até talvez Sidney Magal ou Roberto Carlos, não sei, procura a expressão no termo mais aberto possível. Então, por exemplo, o Milton Nascimento cantando "Travessia" é uma música que... É um tema estritamente rocknroll. Ele fez aquilo em cima da idade dele. A letra de "Travessia", se você pegar, é uma fase que ele estava passando, mas é feita de certo jeito que até uma pessoa de 70 anos pode assimilar e tudo... Então seria a vantagem da MPB. Agora, se ele pegasse aquilo e fizesse um contexto rock, como a Rjta Lee já pegou o mesmo tema e já fez certas coisas, inclusive neste último LP, então fica mais restrito. Por isso é que não se pode comparar MPB com rock porque é uma coisa que não tem a ver. O rock é feito de uma forma específica para atingir um lance específico. Então não dá para você comparar. Agora, essa comparação é feita justamente porque os meios de massa pelos quais o rock é divulgado e é produzido e é massificado no Brasil são justamente meios que não fazem essa separação. Então lá fora você vai ter clubes alternativos de rock, você vai ter imprensa alternativa - mesmo que seja a grande imprensa é imprensa alternativa - vai ter as lojas alternativas de rock, você vai ter produtoras, gravadoras e produtores independentes, essas coisas todas. Ao passo que aqui no Brasil eles colocam tudo dentro do mesmo saco. Quer dizer, se o Egberto Gismonti quer atingir um público um pouco maior ele não vai estar competindo na mesma faixa que o público do Hermeto, por exemplo. Ele vai ter justamente que ser colocado dentro do mesmo saco que o Sidney Magal, que o Amado Batista, que o Kid Abelha etc. Agora tem uma outra coisa aí que muita gente se esquece, é que o pessoal da MPB não segurou a peteca. Todos eles se acomodaram. Então eles falam muito mal do rock, principalmente o Fagner, que fala mal. Eu gostaria até não é comprar briga, mas eu gostaria de deixar uma coisa bem clara: o Fagner fala que o pessoal da geração dele tem mais cultura. Agora eu coloco justamente esta questão que o Jornal do Brasil falou: não é o Renato Russo que está falando, eu estou simplesmente repetindo uma coisa que eu achei um achado genial. O Fagner disse que o pessoal da geração dele tem mais cultura, mas pelo menos da nossa geração ninguém roubou poesia da Cecília Meireles para colocar em música sem pagar direito autoral. Então a gente tem a nossa cultura, mas a gente não faz esse tipo de coisas. E, sabe, a gente não precisa ir para os Estados Unidos para gravar um disco que vai custar 800 mil dólares, como fez o Djavan - não tenho nada contra - mas é a tal estória: não seguraram e não seguraram. Por que Caetano está tocando "Shy Moon" na rádio? Por que o Gilberto Gil está aí ainda? É porque eles acompanham, eles são artistas de verdade e que estão acompanhando o momento presente. É muito fácil você chegar e reclamar que você não está tendo acesso ao rádio se você fica numa forma musical e não tenta aprimorar o seu trabalho, como, por exemplo, eu não acho que o Chico tenha feito muitas novidades e eu não acho que o Milton tenha feito muitas novidades, mas você tem que cair na real. No Brasil, é um sistema que engole o que acontece se você ficar estagnado... Não é como lá fora que você pode fazer um trabalho, por maior qualidade que o seu trabalho tenha, ficar na mesma linha - eu não sou nem contra, acho que você está nessa linha você tem -, infelizmente aqui no Brasil o público gosta muito de novidade. Se você não tem novidade, você cai para escanteio. Então que pintou no Brasil é que tipo assim artistas que eram talentosos e que na época, tinham alguma coisa nova para dizer uma coisa nova a ser dita de uma maneira supercriativa e superbela não conseguiram justamente segurar isso e ficaram na mesma linha e acabaram sendo jogados de lado. E aí acontece o quê? Acontece o rock novidade e pegou espaço. Agora não pensem que a gente não está preocupado. Eu converso com o Herbert e a gente está se cagando nas calças porque a gente não sabe o que vai acontecer. Eu estou sentindo uma pressão muito grande por parte de todo mundo principalmente em cima da Legião Urbana, porque está todo mundo esperando justamente que a gente faça uma coisa nova. Só que agora, para o nosso segundo disco, a gente não vai ter o período de incubação que foi de cinco anos para fazer esse LP Então a gente vai fazer o que a gente quiser agora nesses seis meses vai chegar ao público muito mais rapidamente. Então o que estou pensando é justamente tipo assim: assim como o pessoal está assimilando "Geração Coca-Cola" agora, 5, 6, 7, anos depois será que eles vão assimilar tão imediatamente uma coisa que vai refletir o meu momento atual ou o momento atual do Herbert no próximo disco dele? Então é isso que a gente está pensando. Não pensem que a gente está no bem-bom porque quem faz rock também está tendo as mesmas dificuldades de criação, e tudo porque é muita pressão principalmente no caso dos críticos, que quando a gente apareceu todo mundo ficou surpreso porque eles achavam que quem faz rock não é inteligente. Então aparecendo a gente, o RPM, os Voluntários da Pátria, o Ira, Paralamas, então o pessoal: "Poxa, mas realmente. Olha que bacana, o pessoal que faz rock tem cabeça. Não é aquela coisa antiquada de ficar só fazendo versões e só cantando blaublau!" O que acontece é que eles são muito exigentes. Então o que eu estou sentindo é que eles vão exigir uma coisa muito forte da gente quando, de repente, eu não estou mais a fim de fazer umas coisas tão sérias assim, eu quero fazer uma música que as pessoas se sintam bem, claro, com uma letra assim que tenha um certo conteúdo mas sem precisar falar de angústia, solidão, suicídio, morte e peste. Os anos 80 são esse liqüidificador justamente para mostrar que você pode usar o entretenimento e, dentro do aspecto de massa, você fazer uma coisa que vai ser considerada arte. Então, por exemplo, os Beatles nunca foram lá de fazer coisas muito profundas, existenciais. Claro, eles tinham um certo lado, mas era uma coisa de diversão. Então eu acho que você pode fazer uma coisa divertida, para cima e ser uma coisa que vai ter o seu valor porque o que eu acho que pinta muito no aspecto da crítica no Brasil é justamente que eles se apegam muito a essa coisa do triste, do Sartre, dessas coisas existencialistas, do pessimismo da coisa dark. Claro, se você está angustiado, se você está sozinho numa superparanóia e esquizofrenia e se você tiver um pouco de talento vai sair uma coisa belíssima. Mas pô, pera aí você também pode usar o teu lado positivo para fazer uma coisa legal. Então eu acho que o nosso impasse é justamente esse. Como tenho que fazer uma coisa honesta e sincera e que seja para cima, pra dar uma força pra que as pessoas descartem isso. Porque também tem essa, se você faz uma coisa que é para cima as pessoas imediatamente não vão levar você a sério porque acham que você não está falando uma coisa séria porque nesse caso elas exigem que você parta ou para a sátira, ou para a ironia ou para o humor.

Como é que você compreende o fenômeno Brasilia? Como seria a relação da cidade Brasília com os outros centros na questão da indústria, do espetáculo acontecer lá também, do show acontecer lá, dos shows que se realizam lá, da coisa profissional, do campo, do mercado?

RR - Isso eu acho superpositivo porque moro em Brasília desde 73. Antigamente não acontecia nada e agora que estou mais no meio artístico dá para notar que é uma parada obrigatória no circuito, acho que é uma coisa importante. (... ) O que sinto é que as pessoas não curtem Brasília, não vivem Brasília ainda. Foi uma coisa que sempre foi positivo para o pessoal da tribo, da gente do rock é que a gente catava e ia atrás, então tinha festival no Instituto Goethe, por exemplo, a gente ia atrás. E o que acontece é que muitas pessoas em Brasília vivem como se estivessem no Rio e São Paulo no sentido de não procurar as alternativas e acho que Brasília tem muito para oferecer.

Você acha que inclusive a cidade gerou isso de uma maneira própria no Brasil?

RR - Talvez.

Você acha que é uma coisa específica das bandas de Brasília?

RR - Talvez, porque a gente fazia rock por necessidade lá. Além de ser uma necessidade de você ir contra o tédio da cidade, muita gente que tem o hobby, muita gente faz alguma coisa, muita gente transa esportes que eu acho assim fabuloso. Tirando isso é uma necessidade física mesmo de você se expressar e tudo. Ao passo que se eu estivesse aqui no Rio, ia para praia, ia comer um sanduíche natural e não teria tanta necessidade assim. E acho que Brasília é importante por causa disso, você tem essa motivação. É uma cidade que te inspira, é uma coisa muito dela, é uma cidade muito bonita. Tem um certo astral, não parece uma cidade brasileira. Agora, acho que as pessoas em Brasília poderiam tipo assim se organizar porque ainda é relativamente pequena, tem uma espécie de organização comunitária talvez até a nível político, para ajudar as satélites, acho que o Plano Piloto vive numa ilha, isso é uma coisa muito negativa que devia estar sendo feita, uma coisa nesse sentido para dar força para o pessoal das satélites, ainda mais que tem muita gente que trabalha no Plano Piloto e mora no Cruzeiro, mora em Taguatinga e dá uma força nesse sentido, exigir do pessoal que representa a cidade politicamente, que se faça alguma coisa para que tudo fique numa boa. Não é tão difícil você prever que possam surgir problemas num futuro próximo por causa desse disparate social que existe. Da última vez que fui, senti isso, um ressentimento brabo das pessoas que circulam pela Rodoviária, no sentido de estarem insatisfeitas de verdade e acho que isso é uma coisa que não precisa. Não estou dizendo que todo mundo na Ceilândia tem que ter piscina, mas respeitar um pouco os outros, não ser esse exagero de mordomias que é Brasília, esse exagero de ostentação, acho que podemos trabalhar para isso, transportes públicos, escolas, dar uma força para o pessoal de Brasília.


Trechos da entrevista a Celso Araújo, Correio Braziliense, 17 de novembro de 1985.



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A Face Oculta De Renato Russo


Ele não queria conceder uma entrevista sem o resto da banda de jeito algum. Telefona de cá, argumenta de lá; afinal, Renato Russo e Bia Abramo se encontraram para um verdadeiro face to face. Acompanhem as trilhas tortuosas das idéias do vocalista e letrista do grupo eleito pelos leitores de Bizz como o melhor de 86.


Renato, agora a Legião Urbana está fazendo sucesso. O que mudou na sua vida pessoal em função deste sucesso?

RR - Nada. Quer dizer, o que mudou é que agora eu tenho mais segurança e confiança; menos dúvidas sobre as coisas nas quais eu acreditava. Se você trabalha com sinceridade e dignidade, se tenta ser íntegro e seguir o que você acredita, sem se deixar levar por pressões, você acaba conseguindo. Sei lá, a gente criou uma base que não vai mais embora, não é aquela coisa de fazer sucesso e, de repente, ter que ficar provando porque fez sucesso. Bem, uma coisa que mudou é que agora eu conheço muito mais gente. É uma coisa bacana conhecer milhões de pessoas superfabulosas, mas fabulosas de verdade - pessoas que valem a pena, que te dão aquela coisa, poxa, eu não estou sozinho. Quer dizer, todo mundo está sozinho, mas pelo menos...

A crítica, ao falar do trabalho do Legião, destaca sempre as suas letras. Você acha que, de fato, as letras são a coisa mais importante?

RR - Não. Existem tantas coisas... mas eu não gosto de falar do Legião. A melhor coisa é: nós quatro, do jeito que somos, temos conseguido fazer o que fizemos. Gente, nós éramos uma banda underground! Eu gostaria que a coisa mais importante fosse aquilo que as pessoas escrevem nas cartas para a gente: "Vocês são legais porque são que nem a gente." Bom, eu acho que isso é uma romantização... essa é a imagem do Legião, mas as pessoas percebem que nós somos quatro amigos que fazem música. Não mudou nada. Até hoje eu não sei tocar direito... A gente é super não profissional, é amador no bom sentido, de quem ama o que faz. O importante é isso, mas as pessoas ficam em cima - Rolling Stones/Mick Jagger, RPM/Paulo Ricardo... e não é Legião/Renato Russo. E Legião. Só que eu falo mais - eu sou muito ambicioso -, dou sempre um jeito de falar a coisa certa na hora exata. As letras só tentam provar que alguma coisa é possível... mas as letras são feitas em cima do que os quatro vivem. Quando a gente começou era assim: vamos fazer uma banda? Vamos. Então decidia o nome, as turnês, mas nem sabia tocar.. Mas é isso, quem mais sonha é quem mais faz, eu acredito muito nisso, e também que quem espera sempre alcança. Eu vivo dizendo isso, são as máximas de Renato Russo... Era divertido, é divertido, se não forfun, não tem graça nenhuma. Ultimamente, estava ficando meio pesado, daí eu dei uma parada para ficar divertido de novo. (Pausa) Eu diria que é o seguinte: embora as letras sejam importantes, elas são um meio e não um fim.

E qual é o fim?

RR - Não existem fins, existem meios. Eu sempre penso em começos, nunca em fins.

O fato de ter abandonado o show no meio em Belém (27/02) tem a ver com essa coisa que você disse de estar ficando pesado?

RR - Eu não abandonei o show. Acontece o seguinte: eu não tenho que ficar recebendo lata de cerveja na cabeça e continuar cantando por causa do meu salário. Ah, mas não tenho mesmo! O público fica naquela euforia mas eles não respeitam. Qual é, será que eles não percebem que nós estamos do lado deles? Que a gente está cantando coisas positivas, não está falando "taquem uma garrafa de cerveja na cabeça da gente, porque eu sou mau". A gente tá falando: "Brigar para quê/se é sem querer." Já tinha tido um incidente com o Arnaldo (dos Titãs) e eu falei: podem tacar uma bolinha de papel, se foi feito com má intenção, eu paro! Tá pensando o quê? Eu não sou mártir, não tenho que ficar agüentando moleque mal resolvido. Se é porque o show está ruim tudo bem, mas estava todo mundo adorando, estava tudo bem... e me tacaram uma bela de uma sandália Samoa. Ainda bem que não foi uma garrafa! Depois me falaram que o Paulo Ricardo leva garrafa na cabeça - eu não sei se isso é verdade - e continua cantando, que isso é uma coisa que acontece sempre e ninguém teve esse ataque de estrela. Tudo bem, mas eu é que não vou ficar satisfazendo público que quer ouvir "Eduardo e Mônica" exatamente como está no disco, isso não é rock'n'roll! 'Ah, mas tem que tocar." Tem que tocar nada, eu faço o que eu quero! (... ) Para mim, rock'n'roll é tocar, se divertir, fazer o maior auê e ir embora. Quer dizer, basicamente, a gente tenta fazer a coisa de modo que ela seja sincera, porque senão a gente não segura. Se não estivermos cem por cento ligados no que estamos fazendo, não sai, vai entrar todo mundo em pânico. E tem outra, neste país a mídia está muito desenvolvida, mas, por outro lado, não entendem nada... E também você não tem o respaldo de uma estrutura já pronta, tem que se matar de fazer show, o próprio pessoal da mídia não reconhece. Eles só pisam e pisam... Se vocês são tão importantes e rock'n'roll é tão vulgar, por que falam tanto de rock'n'roll? Por que precisa citar Adorno e Walter Benjamin para provar que não vale a pena falar disso? Eu acho que a maior falta de juízo é discutir com alguém que não tem juízo. É sempre aquela coisa, você tem que ficar pacientemente mostrando: gente, não é por aí. As pessoas vêm me pedir entrevistas para me perguntar coisas que não têm nada a ver: o que eu acho da venda de ingressos do Sambódromo para o Carnaval... Pelo amor de Deus! Pó, vem me perguntar rock'n'roll, que pelo menos eu conheço um pouco, e mesmo assim tenho minhas dúvidas... O que acontece no Brasil é que, se você chega num certo nível, você passa a ter autoridade para tudo. As vezes, isso dá medo. E se você tenta explicar o negócio do rock'n'roll... Eu tenho problemas até em casa, eles acham que eu sou exagerado. Se eu fico três dias com uma letra, eles falam: "0, júnior (o nome real de Russo é Renato Manfredini Jr.), deixa de fazer drama, de ser fresco." Mas isso já está mudando, graças a Deus. O que mais incomoda é quando você recebe uma sandália, quando as pessoas exigem certas coisas que são o oposto do que você está fazendo. Essas coisas tipo concurso pra banda de rock, como as gravadoras estão fazendo. Me diz, você está fazendo rock'n'roll, vai se submeter a julgamento organizado? Isso prova que as pessoas não sabem direito onde estão pisando. Se você está trabalhando seriamente, aquele sério bom, vai correr atrás da informação. Quem sabe um pouquinho da história dos Rolling Stones ou dos Beatles, que todo mundo tem que saber, não cai em arapuca de gravadora. Aí o cara chega e fala: "Pô, rock'n'roll é uma barra, é um trabalho." Trabalho o cú. No dia que rock'n'roll for trabalho, então não é mais rock'n'roll. Eu tinha três empregos para ter dinheiro para comprar uma guitarra, porque a única coisa que eu queria fazer na vida era ficar com a minha guitarra brincando o dia inteiro, não era uma barra. Pô, vai explicar isso para as pessoas, elas vão dizer que eu sou pedante. Agora é essa coisa, briguinhas, cada um por si - como dizem os Titãs: "Cada um por si e Deus contra todos." Vocês nunca passaram pela fase de ir para a casa dos amigos e ficar trocando disco? Só vai para a frente quem é fã. Às vezes, os caras não são realmente fãs, não têm aquela coisa de ficar colecionando tudo, recortando sobre o seu ídolo favorito. (Pausa) Eu acho isso uma coisa tão bacana, porque permite uma ligação com a inocência, de quando você é criança e acredita mesmo nas coisas... Rock é isso. Mas quando ficam te tacando sandálias e fazendo exigências absurdas... Para provar o quê? Que rock'n'roll é rebeldia? Se fosse rebelde realmente, não estaria fazendo rock'n'roll hoje em dia. Tem que ter o pé no chão, as pessoas não percebem que quando as coisas vêm fácil, elas também vão embora fácil. Sei lá, de repente, hoje em dia, até os pais estão querendo que você tenha uma banda de rock... (... ) Claro que a gente sempre muda, né? Mas eu acho que sou a mesma pessoa... E o bacana do rock'n'roll é isso, é você não crescer nunca. Eu gosto do Menudo e pronto. Eu quero me divertir! As pessoas ficam achando que eu sou meio bestinha, que eu não sou assim. Mas eu sou assim, eu sou meio bobalhão mesmo. O mais importante - puxa, eu não te disse que eu falava pra caramba? - é você tentar lidar com isso da melhor maneira possível. Mas é uma coisa muito complexa... Ao mesmo tempo que as pessoas não têm a mínima noção de como as coisas acontecem, elas têm acesso às coisas mais modernas... Então está todo mundo vendo 9 1/2 Semanas de Amor - aliás, eu detestei esse filme...

É, eu também não gostei. E cinema, o que você tem visto?

RR - Ah, eu gosto de ver vídeos... Eu adoro filme de terror. Em geral, eu gosto muito de produções americanas desconhecidas e de filmes ingleses... E filmes que têm aquela coisa humana - eu gosto muito do Renoir e do Truffaut. Truffaut é o máximo. Sabe, o Jules e Jim, que não é nada, mas é cinema, é bem feito e te mexe por dentro. Eu gosto do Spielberg, se bem que ele pega isso e faz aquela parafernália. Eu não tenho tido muito tempo de ir ao cinema. Outro dia eu revi Um Lobisomem Americano em Londres - eu adoro esse filme. Para mim, não é só uma história de lobisomem, é uma história de amor belíssima. Cinema... eu gosto muito. Terror também me atrai muito. Acho que hoje em dia é um paralelo perfeito com o mundo em que a gente está vivendo. Adoro a mitologia do vampiro... Eu acabei de ler um livro, The Vampire Lestat, que eu achei bárbaro. Eu gosto muito de ler.

Do que você gosta em literatura?

RR - Ultimamente, eu não tenho lido muita ficção, eu tenho lido biografias, eu gosto muito de biografias. Bem, Shakespeare eu sempre leio. Mas, virtualmente, eu leio qualquer coisa... Histórias de feiticeiros, de terror, Stephen King, eu adoro... Bem subliteratura mesmo, adoro coisas bem horripilantes. Mas também leio coisas sérias para estudar a linguagem. Ultimamente, eu leio muito Drummond, pode escrever aí - eu amo o Drummond, para mim só existem dois: o Fernando Pessoa e o Drummond.

E prosa?

RR - Prosa eu não conheço. Eu gosto de acompanhar o trabalho do Caetano, presto atenção na construção gramatical, na divisão de sílabas. Até pouco tempo atrás, eu estava estudando sonetos, aí eu lia Camões e tentava fazer os meus... Ah, que bobo que eu sou... tão pedante... Porque um dos meus planos é, quando eu estiver com uns 40, 50 anos, escrever ficção. Eu tenho a minha vida toda planejada.

Quais são os planos?

RR - Rock'n'roll, cinema e literatura. Cinema é muito difícil. Mas literatura eu já quero treinar agora, porque, quando eu tiver já uma carga de vida, aí eu posso escrever. Eu acredito que você tem que passar pelo tempo para poder escrever como o Drummond, o García Márquez, o Thomas Mann...

Mas o Thomas Mann começou a escrever muito jovem...

RR - Eu sei, mas meu plano é dominar a técnica para depois escrever minhas historinhas. Mas é difícil, a língua portuguesa é muitíssimo dificílima (risos). Muitíssimo dificílima é péssimo... Meu plano é ser maior do que o Shakespeare... Ah, é bacana, né? Você vai querer ser o quê? O Zezinho que escreve lá uns romancezinhos? Ora bolas, o plano do Legião era ser que nem os Beatles... É sempre bom ter um sonho. Eu estou guardando todas as pequenas histórias, talvez você se veja numa das personagens... Uma coisa para a qual eu estou me esforçando é ter uma disciplina mental, não no sentido besta da palavra, mas para organizar e tentar lembrar coisas que eu gostaria de escrever.. Como foram as nossas primeiras viagens para o Rio e São Paulo... Algo que nem em The Catcher in the Rye, quando o Holden fala que ele gosta de um livro se depois ele fica querendo que aquela pessoa exista e fica com vontade de conhecê-la. Eu gostaria de criar personagens assim.

De certa forma, o seu trabalho com as letras já traz um pouco dessa visão romântica. Por exemplo, o que é aparentemente político, eu percebo como uma maneira de falar da condição de jovem no mundo, mais do que o aspecto político mesmo...

RR - É, eu não percebo como sendo político, para mim é a minha vida. Se a gente falava dessas coisas é porque estavam acontecendo com a gente. Eu só consigo falar do que sinto e do que vejo, não tenho muita capacidade para inventar. E sempre a partir do Renato Russo. Detesto ficar falando Renato Russo... é tão chato... (... )

De onde você tirou esse nome?

RR - É porque, desde pequeno, eu tinha minhas bandas imaginárias. Ainda mais que eu sou fã do Fernando Pessoa e, quando descobri que ele tinha os heterônimos, eu inventei logo os meus. Eu tinha uma banda chamada Forty Second Street Band, que era até com o Jeff Beck e com o Mick Taylor, eu era um cara chamado Eric Russel. Eu achava esse nome a coisa mais linda do mundo e aí eu era louro e lindo e cheio de gatinhas... Depois, tinha o Rousseau, o Jean Jacques, eu gostava daquela coisa do nobre selvagem... Daí tinha o Henri Rousseau, um pintor que eu amo... e o Bertrand Russel, que eu acho um cara muito legal. Ele escreveu uma coisa bacana, a História da Filosofia Ocidental. Ele fala - não sei se é ele ou o Toynbee - que a grande contribuição do século XX - e o rock'n'roll está incluído - vai ser a união de todas as nações numa só. (Pausa) Acho que o grande mal da civilização ocidental é não ter contato com a oriental. Todo esse pessoal proclama verdade, verdade, verdade e não chega a solução nenhuma... Daí vem o Lao-Tsé e fala: (Renato imita a voz do Mestre, do seriado Kung Fu) "Certo, não há resposta para nada porque há resposta para tudo".

Você bebe nessa fonte oriental?

RR - É tão dificil... Foi o que me segurou... As coisas mais básicas são as seguintes: quem acredita sempre alcança, respeito ao próximo, não faça aos outros aquilo que você não quer que te façam... é meio por aí. No fundo, é o que o I Chinq fala, é o que Buda fala, Cristo e Krishna também... Todo mundo falou, mas ninguém ouviu... Se você tem a intenção de ter um coração puro e tenta seguir o negócio do trabalho e da amizade ter um trabalho digno e tentar cultivar os amigos -, você não tem o que temer. Eu acredito nisso, mesmo. Mas é uma dificuldade... Eu sou um monstro, né, eu sou arrogante, egoísta, ambicioso, pedante, ah, eu me acho o máximo... Aí eu penso: tá, Renato, você está dando uma de bonzinho, mas no fundo isso é vaidade, você é pior do que todo mundo... Meu Deus, e se for verdade? O Grande Arquiteto do Universo lá é que sabe... Eu tento. Eu sou muito jovem, isso realmente vem com o tempo, eu já não fico mais tão nervoso. Mas eu ainda sou desbocado, impulsivo, impaciente, ansioso, violento, ciumento... Mas eu também arrisco bastante, e isso é uma coisa positiva. Eu sou tipo assim: ah, é para cortar o braço? Pronto, cortei, e agora? Eu não tenho medo de fazer certas coisas. Às vezes, você se queima, mas é uma qualidade. O que eu quero é ter disciplina, controlar o lado das emoções desenfreadas, o mau humor. Eu percebo que as pessoas que se amam de verdade conseguem isso. Eu fico na dúvida: será que eu já amei alguém de verdade? Have I ever loved anyone? Sim e não; aquela coisa de respeito mútuo, de respeitar o outro como parte de você e ao mesmo tempo como um ser totalmente diverso, é quando pinta o amor de verdade, que é cada vez mais raro. Mas é uma coisa que eu quero trabalhar. A partir do momento que você consegue isso com uma pessoa, você vai estendendo para as outras. Energia chama energia, dize-me com quem andas e eu te direi quem és... Mas falar é tão lindo, eu vou sair daqui e vou fazer a estupidez de sempre. Eu gostaria de disciplinar esse plano, de ser uma pessoa forte, no sentido de ter segurança... Se você quer ter alguém em quem confiar, confie em si mesmo. Sei lá, muitas vezes você entra em cada depressão por causa de babaquice...


Trechos da entrevista a Bia Abramo, Bizz, abril de 1986.



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